Resumo
A amamentação reflete em geral a harmonia ou desarmonia na relação
entre a mãe e o bebê. É uma situação rica em sensações tanto para a
mãe quanto para o bebê. Mas à partir de um certo momento é necessário
que essa relação incestuosa cesse para que a criança surja como sujeito
e se torne mais autônoma. A brincadeira de deixar cair os objetos mostra
quando a criança está preparada para o desmame. O desmame é a separação
do corpo à corpo entre a mãe e o bebê, ele é simultâneo da divisão
interna que institui o inconsciente.
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A psicanálise nos diz que a relação que se estabelece entre a criança
e a mãe durante o período de amamentação dá sua forma aos
relacionamentos futuros e particularmente aos relacionamentos amorosos na
idade adulta. Percebemos no entanto que nem sempre essa relação se passa
de maneira harmoniosa e o desmame muito freqüentemente é problemático.
A desarmonia entre a mãe e o bebê, em certos casos, parece ser tal que
vai bem além da discordância fundamental existente entre os humanos, o
que nos leva a refletir um pouco sobre o que se passa nesse momento.
Freud nos revelou que o bebê não se separa subjetivamente da mãe quando
nasce, embora seu corpo se separe do dela. A verdadeira separação ocorre
no momento do desmame. Por isso o bebê precisa continuar muito próximo
da mãe até que esteja preparado para essa separação. A amamentação
no seio parece ser a forma de cuidados com o recém-nascido que mais se
aproxima da continuidade intra-uterina ao mesmo tempo em que prepara
progressivamente o bebê para o desmame e para a autonomia.
Durante a vida intrauterina o bebê não sente falta de nada, mas ele já
tem uma certa percepção do mundo que o rodeia. Aos dois meses o embrião
já reage quando é tocado. O desenvolvimento das papilas gustativas e do
olfato se faz logo em seguida mas a alimentação e a oxigenação são
contínuas pelo cordão umbilical. Desde os 3 meses de gestação o feto
é sensível aos estímulos sonoros. Ele ouve inicialmente os sons graves,
tanto mais graves quanto mais jovem é. Ouve a voz da mãe que é mais próxima,
e a voz do pai mais distante, além dos outros ruídos do meio. Ouve também
o diálogo entre os pais e vive muito em função das emoções da mãe.
Desde as primeiras semanas consecutivas à concepção o feto percebe os
movimentos da mãe que dão um ritmo à sua vida. No sétimo mês de gestação
a criança já pode ver, mas é pouco estimulada pela escuridão do ventre
materno.
Algumas dessas percepções continuam depois do nascimento mas com a
distinção dos corpos alguns cortes se operam rompendo a continuidade em
que a criança vivia. Ela perde seus envoltórios e conhece a sensação
de frio na pele que vem lhe provocar um certo mal-estar. Ela começa a
sentir fome e sede que antes não sentia. Com poucos dias ela já mostra
uma reação aos sabores pela mímica. A respiração entra em jogo o que
se acompanha do nascimento da angústia e se manifesta por um grito.
Em seguida, o odor permitirá ao bebê reconhecer e sentir a proximidade
de seu pai e sua mãe. Com 3 dias de nascido o bebê já distingue a voz
da mãe de outra voz feminina. A voz da mãe estimula nele a atividade de
sugar e de mamar. Ele passa também a conhecer a imobilidade externa que
lhe dá uma sensação de desamparo. A criança manifesta desde cêdo um
grande interesse pelo rosto materno, interesse que estaria na origem das
primeiras identificações. Desde a primeira semana de vida, a atividade
visual é função do valor que a mãe lhe dá, ou seja desse encontro com
o rosto do outro.
Assim se estabelece a relação oral, cuja atividade consiste em mamar,
sugar, engolir e morder, através da qual a criança busca restabelecer a
completude em que estava no útero. Freud faz uma distinção entre sugar
e mamar sendo que a mamada no seio materno é a primeira e mais vital das
atividades. A sucção também é procura da satisfação como a mamada,
mas somente na fantasia do bebê, o que nos mostra que ele procura algo
mais além do que simplesmente saciar a fome.
O movimento de sucção que freqüentemente o bebê faz mesmo sem estar
mamando, é também sinal de que está interessado por outras coisas no
mundo que o rodeia. Ele engole, não somente o alimento, mas também o
olhar, a voz e o calor da mãe. Ele é alimentado ao mesmo tempo pela
boca, pelos ouvidos, pelos olhos, pela pele. Isso quer dizer que todas
essas percepções passam a fazer parte dele, embora algumas ele possa
rejeitar, o que ele manifesta por exemplo quando vomita o leite. A mordida
surge em seguida com o nascimento dos dentes, quando aparece combinada à
libido uma pulsão agressiva e destrutiva. É freqüentemente um momento
em que as mães decidem desmamar o filho, muito mais como punição pela
mordida que por um desejo propriamente dito de desmamar.
O objeto que satisfaz ao bebê, o seio, é primeiramente percebido como
fazendo parte dele mesmo, e o desmame será para ele como perder uma parte
de si mesmo. Daí a importância de que seja feito progressivamente e que
a relação entre ele e a mãe se passe também pela fala e pelo olhar.
Assim a criança se prepara para perder o seio, na medida em que este
poderá ser substituído pela voz, pela palavra e pelo olhar. É também
importante que nesse momento seja sempre o mesmo rosto que cuide dele, a
mesma voz, o mesmo olhar, o mesmo cheiro, para que ele possa depois
reconhecer a unidade de seu corpo e do de sua mãe.
A amamentação é em si uma situação rica em sensações sexuais, não
somente para a criança mas também para a mãe, situação que se apóia
num reflexo fisiológico. A sucção do seio provoca a contração do músculo
uterino, o que se acompanha de excitação sexual. A erogeneidade dos
mamilos também é fonte de sensações sexuais para a mãe. É muito
importante que não somente a criança, mas que também a mãe tenha
prazer com a amamentação. Algumas mães ficam muito inquietas com isso,
o que pode provocar dificuldades na amamentação e até mesmo inibição
da lactação. Outras vezes também, sem se dar conta, algumas mães se
consolam com o bebê de suas frustrações eróticas, ficam muito coladas
com ele, dando-lhe às vezes o lugar do próprio marido na cama. Tudo isso
também influencia na harmonia ou desarmonia da relação entre a mãe e o
bebê.
Todos os cuidados dados pela mãe induzem a sexualização precoce da
criança, e é normal que seja assim, sendo a amamentação o tempo
permitido à criança para permanecer nessa relação incestuosa. Mas essa
relação deve ser proibida a partir de um determinado momento e submetida
à castração para que a criança possa justamente ter acesso ao simbólico
e à linguagem. O desmame é a interdição dessa relação com o seio. É
frequentemente um traumatismo que provoca tristeza no bebê e deixa nele
traços permanentes. É no momento do desmame que a criança se separa da
mãe subjetivamente relembrando o nascimento. Esse momento é doloroso
também para a mãe, mas é indispensável para a estruturação da criança.
A separação do desmame é na realidade o reflexo de uma divisão interna
na própria criança que funda o inconsciente e lhe faz entrar na
linguagem, tornar-se falante. A criança mostra que está pronta para isso
quando começa a brincar de deixar cair os objetos e esperar que retornem,
o que acontece entre 6 e 18 meses. Ao mesmo tempo o intervalo entre as
mamadas aumenta, algumas vão sendo suprimidas.
Ela pode suportar um tempo cada vez maior de ausência do seio. A
brincadeira de deixar cair já é de certa forma a representação do
desmame. Isso acontece porque a criança percebe que não satisfaz
inteiramente a mãe, pois a mãe se interessa pelo pai. Com o desmame, a
relação que era dual passa a ser ternária. E a criança que até então
se percebia numa espécie de indissociação com a mãe, e que ainda não
tinha noção da unidade do corpo da mãe, passa a percebê-la como objeto
inteiro, ou seja, a voz, o olhar, o rosto, o cheiro, o seio, pertencem
todos à uma mesma pessoa e desse conjunto mãe, ela não faz parte. Ela
como se deixa então cair da mãe como deixa cair o seio e deixa cair um
brinquedo, ao mesmo tempo em que sua autonomia muscular aumenta.
Identificando-se com essa parte perdida de si mesma ela surge então como
sujeito desejante. A linguagem se desenvolve, ela passa a se interessar
por outros alimentos, outras pessoas, outros objetos, outras percepções.
Autora:
Telma
C. N. Queiroz
Psiquiatra,
psicanalista, professora do Centro de Ciências
da Saúde da UFPb e doutora em
psicologia pela Universidade de Paris
13.
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Publicado
em 18/04/2007
Fonte: Site Psicopedagogia Brasil